06/03/2016

{Desafio de escrita} A noite antes

Foto: Flickr

Um estalo e abro os olhos

É noite.

Resmungo para a almofada e confiro as horas no relógio da parede, esticando os braços sobre o braço do sofá. É meia noite e quinze e a luz do abajur ainda está ligada, com a televisão zumbindo baixinho no canal de notícias. Dormi apenas uma hora. Não acredito. Mas eu sei o porquê.

Amanhã é o meu grande dia, em que vou finalmente vou embarcar para três semanas na Europa. Os primeiros dias alternando entre Portugal e Espanha, passando pra França, Suíça, Alemanha, Polônia, Holanda, Inglaterra e terminando na Irlanda. Uma passadinha na Escócia se tiver tempo. Amanhã vou viajar de avião pela primeira vez. Amanhã enfrentarei sozinha horas e horas de voo, confinada em uma poltrona com pessoas desconhecidas. Mas eu não ia sozinha.

Faz anos desde que começamos a planejar nossa viagem. Dois pontos eram certos: Holanda e Irlanda. Eu queria muito ir à Amsterdã, e minha irmã tinha o sonho de ir até as terras mágicas de seus livros. Tudo em nossa vida era a magia que nos esperava mundo afora, nossos sonhos e nossos anseios.Tenho vontade de ligar para ela agora e perguntar se minha irmã ainda lembra os planos que cultivamos. Foram tantos.

Tensiono pegar o telefone, e quando alcanço o tapete onde o deixei, meus dedos alcançam somente pelo macio. É meu fiel companheiro, Lasanha, um gato laranja que escolheu este momento para se esparramar no chão. Acaricio seu focinho preto enquanto ele ronrona. É uma pena não poder levá-lo na viagem. Ele reclamaria tanto quando minha irmã, mas sua cara feia não apareceria nas fotos.

- O que acha, Lasanha? - pergunto, pegando o telefone com dedos firmes. - Ligo ou não ligo? Jogo na cara dela que vou sozinha amanhã na nossa viagem?

Mas ele balança a cauda e pisca, sem sequer miar para mim. Suspiro. A decisão é minha, e estou sozinha. Começo a teclar os números, e ouço a chamada, Toca, toca e toca. Então: "caixa postal..." e desligo.

- Nem me atende - resmungo para o gato. - Ela não está nem aí para mim! Deve estar na balada, no bar, até no cinema que ela odeia, mas que o "sr. Perfeito" adora. Ela nunca foi comigo! - estou com raiva agora. Quando vejo que estou com raiva demais, paro. - Não vou estragar minha última noite em casa por ela.

Minha irmã. Enquanto passam as horas, eu me pergunto porque ela desistiu da viagem, e em que ponto da nossa vida juntas que foi. Quando tinha quinze e ela dezoito, começamos a juntar o dinheiro. Quando me formei no ensino médio, começamos a planejar o roteiro passo a passo. Quando nos mudamos para um apartamento, eu continuei ligando para agências de viagem e conferindo preços. Mas ela falava em mestrado e, ao invés de uma aventura, queria estabilidade. Pegou sua parte do dinheiro e investiu em um imóvel.

Então estou aqui sozinha, às duas da manhã, buscando comida na geladeira, temendo o dia seguinte. Eu sei que ela quis seguir em frente e preferiu a aventura da vida adulta ao sonho de adolescente, mas há algo em mim que anseia pela realização do meu plano. De começar a conhecer o mundo. Não queria ir sozinha, mas a vida dá voltas, não é? Amanhã - não, hoje daqui a algumas horas - parto para meu novo desconhecido, onde nunca estive. Sempre ela esteve comigo.

Mas não hoje. Mas não nesta viagem. E quando dá três da manhã, estou enrolada em um cobertor na varanda, televisão desligada e luz apagada. Meus olhos estão pregados na cidade abaixo, piscando sonolenta na madrugada. Ouço Lasanha explorando a cozinha e perseguindo casuais aranhas pelo piso. Não quero mais dormir, e nem sequer tenho sono. Minhas malas estão prontas, esperando no corredor. Meu diário de viagem está rolando nas minhas mãos, esperando para ser preenchido. O plano inicial era escrevermos juntas, e agora é só meu. Todos os espaços em branco esperando para serem completados pela minha letra.

É difícil assumir que se está só. É difícil admitir que uma parte da sua vida ficou para trás, e que agora é preciso continuar sem ela. Nós crescemos e amadurecemos, mas nunca estamos prontos para a mudança. E este é o meu momento da mudança. É quando aceito que estou sozinha nessa. E estou.

Quando dá seis horas da manhã, já dormi durante mais do que esperava, e ainda por cima na minha cama, não no sofá. Tomo banho e engulo uma xícara de chá fumegando, e levo as chaves do apartamento para o vizinho do andar de cima, que ficará a cargo do Lasanha pelas semanas seguintes. Junto minha bagagem, meu espírito de aventura e o resto de coragem que a noite me deixou. E vou.

Este texto faz parte do Desafio de escrita e corresponde ao item 19 - Você não consegue dormir. Leia o primeiro texto do desafio também... Semana que vem tem mais! :D

2 comentários:

  1. Oie Natalia =)

    Achei bem interessante a ideia do Desafio de Escrita.
    Parabéns pelo texto!

    Beijos;***

    Ane Reis.
    mydearlibrary | Livros, divagações e outras histórias...
    @mydearlibrary

    ResponderExcluir