09/03/2014

Detalhes de perspectiva


Era a rotina. Todos os dias, era sair na sacada do apartamento que estava lá. Ela se inclinava sobre a balaustrada e espiava um pouquinho da vida dos outro de seu ponto privilegiado.

O movimento. As ruas, as pessoas. Quem estava no celular ou ouvindo música, com os fiozinhos brancos do fone de ouvindo saindo do casaco. Quem estava acompanhado, quem estava sozinho. Quem estava aparentemente feliz, quem estava mais cabisbaixo. Quem parecia precisar de um abraço. Quem estava, mais raramente, com um livro debaixo do braço.

Ela sempre observava, curiosa e atenta. Tentava reconhecer alguns rostos, ou apenas coisas em comum. Entre pessoas, entre os dias. Naquele um sol descorado havia se esgueirado pelas nuvens de chuva, agora clareava o calçamento e fazia os carros molhados reluzirem. Havia alguns guarda-chuvas, e ei! Lá passeava uma sombrinha cor de rosa com uma enorme Hello Kitty estampada. Ela riu. Ela sempre quis ter uma sombrinha daquelas. Mas logo a sombrinha dobrou a esquina e foi embora. Ela continuou ali, na sacada, meio invisível, meio alheia ao mundo.

"Ei, o que você está olhando?" A voz meio do seu lado. Ela se virou para ver o vizinho na sacada ao lado, que, ao invés de observar o movimento, aparentemente, estava observando ela.

"Tudo." E ele lá tinha que saber de alguma coisa? Eles já haviam se encontrada duas ou três vezes, nas escadas do prédio. Ou na portaria. Ele quase sempre levava um livro. Ela lembrou-se de que sua irmã costumava comentar que, se alguém era leitor assíduo, nunca poderia ser de todo lá. Pelo menos cérebro tinha.

"O que você está lendo?" ela perguntou de volta, mais para ter uma pergunta esdrúxula do que por curiosidade. Mas quando ele ergueu o livro e ela reconheceu a capa de uma ficção de alta qualidade, ficou interessada.

Lá embaixo, um carro buzinou, e ela lentamente voltou para a sua rotina.

"O que você está vendo?" ele insistiu na pergunta. E o que mais ela poderia responder?

"Os detalhes."

"Não quer ver os detalhes lá da rua? Digo, da calçada?"

E porque? Ali sua visão era privilegiada. Estava no topo, mas... Não havia sua participação. A vida nas ruas não era a mesma que vê-la. Ela só via, tudo, e os detalhes. Claro, era a rotina. Era um pequeno passatempo ocioso. Então seu olhar foi para dentro do apartamento. Sua pequena câmera fotográfica, que ela estava para jogar fora, poderia ter outra utilidade, não mais parada na estante.

As ruas brilhavam lá no chão, e parecia mais brilhante com a nova perspectiva. Ela buscou a câmera e voltou à sacada; ele ainda estava lá.

"Vai comigo?" perguntou.

6 comentários:

  1. Estou sem palavras, de verdade. Acabou de animar um pouco mais o meu dia, valeu (:

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  2. Oie Natália =)

    Pois é ... as vezes estamos tão acostumados a só olhar a vida passar que esquecemos que tb fazemos parte dela.

    Belo texto!

    Beijos;***

    Ane Reis.
    mydearlibrary | Livros, divagações e outras histórias...
    @mydearlibrary

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  3. Oi Natália!
    AMEI seu conto!!! Já deu até para imaginar um romance entre os dois <3

    Beijos,
    Sora - Meu Jardim de Livros

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  4. você que escreveu? Amei ♥
    Eu escrevi também, se quiser conhecer o meu blog, fique a vontade: http://osvintes.blogspot.com.br/

    beijos ;*

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