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04/04/2014

A continuação

Este conto é a continuação de Detalhes de perspectiva
Clique aqui para ler como a história começou.


Ela se embrulhou no casaco, calçando as botas. E pensava: Porque estou fazendo isso? Mas que diabos... Seu coração estava meio palpitante enquanto sua mente digladiava com ela mesma. Ela queria tanto ir lá fora... Mas, mas, e a insegurança? Não que ela não saísse de casa, porém, eram sempre atitudes tão automáticas; qual era o motivo daquele passeio inusitado?

Então ela ouviu seu nome sendo chamado do lado de fora do apartamento. "Humm, Hannah? Você ainda está aí?"

Claro, seu idiota, pensou ela, subitamente irritada. Eu obviamente pulei pela janela. Em seguida balançou a cabeça, tentando dissipar aquele pensamento. Seja leve, suspirou, leve, leve. Apanhou a câmera e foi para fora.

Do lado de fora do apartamento, seu vizinho estava esperando com um casaco que lembrava o de Neo em Matrix, só que marrom. Hannah lembrou por um breve momento uma cena do filme, e voltou a se concentrar nele.

"Oi, John." Ela torceu para que este fosse seu nome. Tinha entrado em um breve estado de perda de memória, e deu um sorriso torto quando ele riu.

"Meu nome é Jared, na verdade." Ele não perguntou se ela não sabia o nome ou só tinha se esquecido. Ficaram em um silêncio constrangedor enquanto desciam as escadas. Se continuar assim, Hannah pensou, nervosa,  dou no pé antes que dê cinco segundos. Seus pensamentos meio amargurados sumiram assim que saíram para a rua. Um vento frio soprava entre os prédios, fazendo os cabelos de Hannah esvoaçarem em todas as direções. Ela riu, sentindo o ar fresco e as cócegas no nariz.

Jared riu com Hannah, se divertindo enquanto ela brigava para pôr os fios no devido lugar.

"Isso não é tão engraçado" Hannah protestou, mesmo com um meio sorriso. Olhou ao redor, indecisa. Ela fazia parte da rotina naquele momento; da rotina só que no chão. O que aconteceria agora? Hannah sentiu o nervosismo, que fora espantado pelo vento e por sua deselegância, voltando. Jared foi rápido.

"Quer procurar por algo? Ir em algum lugar?" Ele apontou para a câmera que ela segurava entre os dedos. "Aposto que isto aí opera milagres."

Hannah deu-se um sorriso, adorava fotos. Hesitante, ergueu a câmera e focou a rua. Tudo ali estava vivo, os carros, as pessoas, as árvores meio magras do inverno. E a cena ficou eternizada quando ela bateu a foto. Mostrou o resultado a Jared, que aprovou de imediato com um grande sorriso.

"Tem um lugar que acho que você vai gostar" ele começou, metendo as mãos no bolso do casaco-Neo. "Bom para fotografar. O que acha?"

Hannah nem pensou antes de responder. "Acho que é uma boa ideia."

09/03/2014

Detalhes de perspectiva


Era a rotina. Todos os dias, era sair na sacada do apartamento que estava lá. Ela se inclinava sobre a balaustrada e espiava um pouquinho da vida dos outro de seu ponto privilegiado.

O movimento. As ruas, as pessoas. Quem estava no celular ou ouvindo música, com os fiozinhos brancos do fone de ouvindo saindo do casaco. Quem estava acompanhado, quem estava sozinho. Quem estava aparentemente feliz, quem estava mais cabisbaixo. Quem parecia precisar de um abraço. Quem estava, mais raramente, com um livro debaixo do braço.

Ela sempre observava, curiosa e atenta. Tentava reconhecer alguns rostos, ou apenas coisas em comum. Entre pessoas, entre os dias. Naquele um sol descorado havia se esgueirado pelas nuvens de chuva, agora clareava o calçamento e fazia os carros molhados reluzirem. Havia alguns guarda-chuvas, e ei! Lá passeava uma sombrinha cor de rosa com uma enorme Hello Kitty estampada. Ela riu. Ela sempre quis ter uma sombrinha daquelas. Mas logo a sombrinha dobrou a esquina e foi embora. Ela continuou ali, na sacada, meio invisível, meio alheia ao mundo.

"Ei, o que você está olhando?" A voz meio do seu lado. Ela se virou para ver o vizinho na sacada ao lado, que, ao invés de observar o movimento, aparentemente, estava observando ela.

"Tudo." E ele lá tinha que saber de alguma coisa? Eles já haviam se encontrada duas ou três vezes, nas escadas do prédio. Ou na portaria. Ele quase sempre levava um livro. Ela lembrou-se de que sua irmã costumava comentar que, se alguém era leitor assíduo, nunca poderia ser de todo lá. Pelo menos cérebro tinha.

"O que você está lendo?" ela perguntou de volta, mais para ter uma pergunta esdrúxula do que por curiosidade. Mas quando ele ergueu o livro e ela reconheceu a capa de uma ficção de alta qualidade, ficou interessada.

Lá embaixo, um carro buzinou, e ela lentamente voltou para a sua rotina.

"O que você está vendo?" ele insistiu na pergunta. E o que mais ela poderia responder?

"Os detalhes."

"Não quer ver os detalhes lá da rua? Digo, da calçada?"

E porque? Ali sua visão era privilegiada. Estava no topo, mas... Não havia sua participação. A vida nas ruas não era a mesma que vê-la. Ela só via, tudo, e os detalhes. Claro, era a rotina. Era um pequeno passatempo ocioso. Então seu olhar foi para dentro do apartamento. Sua pequena câmera fotográfica, que ela estava para jogar fora, poderia ter outra utilidade, não mais parada na estante.

As ruas brilhavam lá no chão, e parecia mais brilhante com a nova perspectiva. Ela buscou a câmera e voltou à sacada; ele ainda estava lá.

"Vai comigo?" perguntou.

19/03/2013

[Escrivaninha] Libertando-se


A neve caía levemente sobre seus ombros, tocando seu rosto como ninguém nunca fizera e queimando onde tocava em suas mãos tão pequenas. A rua vazia a acompanhava, deixando-a que caminhasse o mais devagar possível, fazendo com que os flocos tão frios a congelassem lentamente. Muito lentamente, de um modo que ninguém percebia.

Ela ergueu os olhos para o céu turvo, a cor um cinza tão pesado que parecia preto, e se sentiu a pessoa mais feliz do mundo. Seu coração estava quente e batia forte, alegre, com se tudo o que visse fosse céu azul e sol radiante. 

Mas o sol que ela via estava muito, muito distante. O céu azul estava atrás daquelas nuvens pesadas que prometiam uma tempestade para mais tarde. Ela estava esperando aquela tempestade, pois sabia que, depois de tanto tempo retraída e imersa em solidão, sua alma iria se sentir mais viva com a neve. Era sempre assim que acontecia, era isso que ia acontecer. Ela já podia sentir o retorno da vida para dentro de si.

A neve começou a cair mais pesada, e ela deu um giro sobre a calçada molhada. Sorriu, e girou mais uma vez. E outra. E mais uma. Até que, quando percebeu, estava deslizando pela rua, girando e girando, e rindo. Estava rindo, pela primeira vez em muito tempo. Talvez mais de cinco dias. Rindo, e girando. Desde quando havia tanta felicidade em si?

Mas ela não se importava. Não, ela estava ocupada demais apenas rindo e girando, e chorando de tanto rir. Caiu sentada na calçada, e jogou a cabeça para trás, sorrindo tanto que suas bochechas doíam. Seus olhos vertiam lágrimas de felicidade, e seu peito estava tão estufado que parecia querer explodir. Tinha sido liberta, e mesmo que não houvesse ninguém para presenciar sua vitória, ela só sorria.

Ela expirou, soltou devagar o ar. Riu mais, sorriu, colocou a língua para fora e deixou que a neve caísse ali, congelasse sua boca e a fizesse a pessoa mais feliz do mundo.

Ergueu-se devagar, sacudiu um pouco da neve que ficara grudada em seus jeans. Sorriu para o horizonte, para a rua deserta, para a neve tão fria. Fazia muito tempo desde que era como a neve - ou tão gelada quando - mas aqueles eram tempos passados.

Ela girou mais uma vez, e agora sua música preferida estava tocando em sua mente. Colocou os fones de ouvido, sorriu mais um pouco, e deixou a música tocar.

Logo, a neve caiu mais forte, porém ela estava longe daquela rua solitária. Mas ainda estava sorrindo.